ABRE2021 Congress panel: As Religiosidades “Brasileiras” e  Suas Comunidades: Práticas de Bem-Estar e Cura no Contexto Transnacional

Painel do Congresso ABRE Associação de Brasilianistas na Europa

20 Setembro 2021, h19-21 (CET)

Giovanna Capponi (University of Roehampton), Sara Clamor (EHESS), Emily Pierini (Università di Roma La Sapienza/UFSC), Tatiana Golfetto (Università di Roma La Sapienza), Marcello Muscari (USP/Universitat zu Koln)

Evento aberto ao público faça a sua inscrição pelo Zoom:

https://zoom.us/webinar/register/WN_TzTAqbrkR82YhUtB4YTZvA

Ao longo das últimas décadas, diversas expressões religiosas originadas no Brasil conheceram uma notável expansão no continente europeu. É possível observar, especialmente nos últimos anos, não somente o surgimento de novas comunidades de Umbanda, Candomblé, Vale do Amanhecer, entre outras, como também o crescimento e a renovação de comunidades preexistentes. A análise da difusão transnacional destas práticas religiosas revela em muitos casos uma multifacetada inter-ritualidade, fruto da integração de símbolos, códigos estéticos e valores pertencentes à espiritualidade «brasileira» e outras práticas, preexistentes ou não, no território europeu. Elas podem ser repensadas e apresentadas sob formas originais que com mais facilidade atraem o público, passando a incluir elementos esotéricos que até então não faziam parte do seu sistema simbólico religioso . Assim, é possível encontrar em determinados contextos entidades afro-brasileiras que aconselham sessões de reiki e tratamentos com homeopatia, ao mesmo tempo em que guias da umbanda e orixás do candomblé manifestam-se em sessões de xamanismo e de terapia sistêmica. Os praticantes europeus movimentam-se então entre ortodoxia e holismo, entre a defesa de uma suposta autenticidade e o fascínio cativante do «exotismo». O presente painel procura refletir sobre a formação dessas comunidades (e, em alguns casos, a sua rápida dissolução e mudança), e investiga as necessidades sócio-psicológicas que levam os praticantes europeus a colocarem em relação práticas religiosas de origem brasileira e conceitos e elementos provenientes das mais diversas tradições. A partir da análise de casos de estudo e dos nossos dados de campo, e discutindo as trajetórias espirituais de alguns de seus protagonistas, tentaremos também entender os motivos que levam os participantes a se movimentarem entre diferentes grupos e práticas. Qual tipo de participação estas exigem? De que maneira elas respondem a uma busca pelo bem-estar psico-físico, assim como este é percebido pelo seu público? Qual relação elas estabelecem com o Brasil e com os brasileiros residentes na Europa?


Programação:

Sara Clamor (EHESS). Um candomblé em Paris

1986. Pela primeira vez, Geraldo, pai-de-santo de Belo Horizonte, viaja para Paris. Convidado por um amigo que mora na cidade, ele começa a oferecer suas consultas a pessoas que precisam de ajuda espiritual. Graças às suas capacidades como sacerdote, pai Geraldo fica conhecido. Incorporado por uma entidade da umbanda, o doutor Hoffmann, médico alemão morto logo após a Segunda guerra mundial, o pai de santo efetua cirurgias espirituais, além de propor uma série de rituais de limpeza e de cuidado à saúde a seus vários clientes. Como a história de pai Geraldo testemunha, as religiões afro-brasileiras estão presentes e se expandem no horizonte religioso de vários países europeus desde os anos Oitenta. É o caso, como vimos, da França: após a chegada de pai Geraldo, e a partir dos anos ’90, um grupo de praticantes começa a se reunir nos espaços do teatro Aleph, em Ivry-sur-Seine, às portas de Paris, local onde o pai de santo brasileiro passa a organizar giras de umbanda a convite do diretor . Hoje é o filho dele, igualmente pai-de-santo de candomblé angola que, viajando anualmente do Brasil à França, coordena o grupo parisiense o qual, mesmo na sua ausência, se reúne uma vez por mês. Neste caso, a religião se apresenta como fator de aglutinação comunitária e permite a criação de vínculos de amizade e de solidariedade entre os praticantes que incorporam as entidades afro-brasileiras nesse pequeno teatro francês. Minha comunicação tenta assim mostrar de que forma as religiões afro-brasileiras criam novas comunidades de praticantes e quais as suas potencialidades de modo a conseguir despertar o interesse do público europeu. Ao mesmo tempo, cada grupo de culto transnacional tem que enfrentar várias dificuldades, tanto para se estabelecer quanto para se perpetuar ao longo dos anos nos países em que, bem além das fronteiras brasileiras, essas práticas religiosas se inserem.

Giovanna Capponi (University of Roehampton). O sangue animal entre efficacia ritual e “energia pesada” no contexto transnacionalA presente comunicação propõe uma reflexão, a partir tanto de dados coletados no campo quanto de referências bibliográficas recentes, sobre as diferentes interpretações e as divergências no uso de sangue animal em rituais de candomblé na Itália e no Brasil. O contexto religioso transnacional é um excelente laboratório social para se analisar como as comunidades das religiões de matriz africana se formam e mudam a própria composição ao longo dos anos. Em muitos casos, é possível observar como a trajetória espiritual das lideranças tenha, até certo ponto, o poder de definir a linha de interpretação e os interesses que levam os vários participantes a fazer parte da comunidade em questão. Porém, é frequente que os integrantes e participantes desses novos grupos religiosos passem a divergir sobre alguns temas como, por exemplo, a aderência à tradição mais ortodoxa, o respeito à hierarquia ou as várias adaptações da prática ritual no contexto europeu. Nos últimos anos, as divergências sobre o uso do sacrifício ritual, tanto na Europa quanto no Brasil, chegaram a gerar debates que vêm, de um lado, a defesa da necessidade de se modificar a prática e, do outro, de manter a aderência à ortodoxia ritual. O sangue animal, de fato, é descrito pelos afro-religiosos como uma substância poderosa e eficaz que garante o sucesso do ritual e os benefícios desse último, mas ao mesmo tempo é considerada “pesada”, forte e perigosa. Esta ambivalência, somada aos problemas de legislação sobre os maus-tratos de animais, aos problemas éticos e às escolhas alimentares, chocam-se com as expectativas de bem-estar psico-físico, cura e resolução de problemas pessoais e espirituais que os membros esperam obter através da prática ritual. É minha intenção descrever aqui algumas estratégias e algumas considerações que levaram os meus interlocutores, em um contexto transnacional, a aceitar, reconsiderar ou repudiar o uso de sangue animal chegando, em alguns casos, a buscar alternativas. Esse tema multifacetado indica não só um problema relacionado às escolhas de consumo e de alimentação dos participantes, como também revela as diferentes cosmovisões e expectativas sobre o bem-estar espiritual e a relação entre humanos e animais.
Marcello Muscari (USP/Universitat zu Koln). Desenvolvimento pessoal e mediúnico em uma Umbanda Alemã: notas para um entendimento da aproximação entre Umbanda e o universo das terapias alternativas

As aproximações entre religiões afro-brasileiras e práticas “new-age” constitui-se como um dos desdobramentos mais recentes do campo religioso afro-brasileiro, como solidamente documentado por pesquisadores brasileiros desde a década de noventa. Tradicionalmente entendido como um campo paradigmático para a investigação das idiossincrasias e contradições constituintes da sociedade brasileira, enquanto se observou um movimento geral de re-africanização no Candomblé, reforçando a especificidade ethno-cultural desta instituição social, a Umbanda, por outro lado, desde meados da década de 60, parece mover-se em direção a formulações mais universalistas de espiritualidade. Quando considerada a expansão transnacional das religiões afro-brasileiras, na medida em que sua nova audiência passa a ser majoritaria composta por brancos europeus, esta formulação em termos universalistas por aproximação com práticas esotéricas parece conformar-se como regra, e não mais como um evento relativamente restrito em um campo religioso mais amplo. Este é o caso na “Casa Saint Michael - Haus des Reinen Wassers”, grupo de Umbanda baseado em Cologne (Alemanha) composto majoritariamente por alemães e que eu tenho estudado pelos últimos quatro anos. Organizados em torno de uma terapeuta alternativa e agora Mãe de Santo, o grupo iniciou em 2006 um processo gradativo de integração de referências e rituais da Umbanda e do Candomblé a outras modalidades terapêuticas como terapia sistêmica, constelação familiar, xamanismo e astrologia, com vistas a trabalhar o que chamam “desenvolvimento pessoal”. Nesta apresentação eu irei introduzir suas ideias e práticas em torno da noção de “desenvolvimento pessoal”, como elas aparecem no contexto de sua “bewusstseinsschule” (escola de consciência), colocadas em relação com as ideologias e práticas umbandistas relacionadas ao “desenvolvimento mediúnico”, tal como mobilizadas pelo grupo. A partir desta apresentação irei explorar analogias estruturais suportando a aproximação entre estas distintas práticas rituais, buscando compreender as condições de possibilidade e dinâmicas internas à integração da Umbanda por grupos esotéricos e praticantes de terapias alternativas.

Tatiana Golfetto (Università di Roma La Sapienza). Axé é energia: a expansão das religiões afro-brasileiras na Itália e as terapias holísticas

A análise da expansão de religiões como o candomblé e a umbanda para além das fronteiras brasileiras e a consequente circulação global de seus elementos e práticas é um campo que atrai cada vez mais estudiosos. Particularmente em relação ao contexto europeu, é possível observar como essa expansão ocorre de maneira significativa entre pessoas que frequentam terapias alternativas e práticas que promovem o bem-estar psicofísico e o autoaperfeiçoamento, assim como tradições provenientes sobretudo do Oriente e que foram englobadas no chamado universo New Age. Um exemplo significativo nesse sentido é o contexto italiano. Apesar da imigração brasileira no país ter tido papel fundamental na introdução dos cultos afro-brasileiros durante a década de noventa do século passado, atualmente essa expansão é liderada por sacerdotes italianos que são em sua maioria terapeutas holísticos ou que possuem alguma ligação com tais práticas. A partir da análise da constituição e do crescimento de duas comunidades de candomblé na Itália, e considerando a trajetória dos seus dois sacerdotes responsáveis, esta apresentação pretende discutir as relações estabelecidas entre os elementos religiosos afro-brasileiros e alguns conceitos e práticas provenientes dessas terapias alternativas. O sacerdote/terapeuta pode operar, em determinados momentos, aproximações e reinterpretações colocando em relação, por exemplo, o candomblé e a bioenergética. Emerge, dessas dinâmicas, uma ideia de cuidado e de equilíbrio psicofísico que se torna cada vez mais atrativa na sociedade atual.

Emily Pierini (Università di Roma La Sapienza/UFSC). Trajetórias Terapêuticas Transnacionais: O Vale do Amanhecer 

Na última década, as práticas mediúnicas do Espiritualismo Cristão do Vale do Amanhecer se encontram em um rápido processo de transnacionalização que inclui a abertura de templos na Europa e o desenvolvimento e a iniciação de médiuns europeus. Enquanto as perspectivas sobre os processos de transnacionalização das religiões tendem a enfatizar as trajetórias diaspóricas dos migrantes que relocalizam suas práticas religiosas, nessa apresentação mostrarei como as práticas mediúnicas do Vale do Amanhecer envolvem ativamente participantes locais em seu desenvolvimento em outros países além do Brasil. Os templos do Vale do Amanhecer são considerados pelos médiuns como ‘prontos socorros espirituais’ onde os médiuns incorporam seus mentores espirituais para a cura espiritual dos pacientes. Como a cura é uma preocupação primária daqueles que se aproximam dos templos do Amanhecer, abordarei as trajetórias do Vale do Amanhecer na Europa do ponto de vista das trajetórias terapêuticas. Mais especificamente, analisarei a colocação dessas práticas mediúnicas em contextos transnacionais a respeito das redes de terapias holísticas, curas energéticas, counselling e outras práticas não-biomédicas de bem-estar, bem como do turismo espiritual voltado para a cura, que marcaram as trajetórias dos médiuns e dos pacientes europeus. O desenvolvimento dos templos do Amanhecer e das suas práticas mediúnicas serão então abordados em relação às culturas terapêuticas - além daquelas religiosas - que circulam nos países europeus, examinando como essas constituem um solo fértil para a introdução dos conceitos de corpo e self, doença e cura articulados pelo Vale do Amanhecer.